Muitas pessoas que me procuram para aulas de canto relatam um profundo desejo de cantar e revelam também frustrações com relação a experiências ligadas ao canto que ocorreram em algum momento de suas vidas. O motivo das frustrações, em grande parte dos casos, está relacionado com críticas negativas recebidas na infância, adolescência ou juventude. A reação dessas pessoas é muito semelhante. Simplesmente elas se calam e não cantam mais, temendo novas críticas ou julgamentos.
Mas o desejo de cantar é maior e ele se manifesta em algum determinado momento como um “chamado” para o reencontro com algo que ficou esquecido em algum ponto da biografia. Os mais ousados ao ouvirem este “chamado”, se arriscam a atendê-lo, procurando corais amadores ou karaokês para soltar a sua voz mesmo que ainda um pouco temerosos. Também passam a freqüentar aulas de canto para aprender a cantar e melhorar a sua voz, mas frequentemente com pensamentos um tanto desanimadores: “Eu sou tão desafinado, será que minha voz tem jeito?” ou “Com essa voz de taquara rachada, eu vou conseguir cantar algum dia?”. Estas pessoas chegam desacreditadas e desconhecendo as suas verdadeiras potencialidades vocais.
Outra questão que surge após o ingresso em um coral ou aula de canto, é o estranhamento da família e dos amigos. Os futuros cantores precisam estar muito seguros da sua opção, pois vão receber além de elogios por sua iniciativa, questionamentos sobre a sua opção, algumas vezes acompanhados de uma piada ou brincadeira desanimadora.
Ao iniciar aulas de canto na idade adulta, muitas vezes o próprio aluno não tem claro os seus motivos e onde quer chegar, apenas sente uma necessidade interna de se expressar desta forma. É necessário que o professor compreenda que tudo o que foi exposto anteriormente, faz parte da história do aluno e vai acompanhar o seu trabalho. O professor também precisa estar preparado para trabalhar com possíveis dificuldades motoras e auditivas, bem como proporcionar o acolhimento necessário para a livre manifestação do seu aluno. É importante partir da auto-observação constante e valorizar os progressos mais modestos. Tudo isso pode ser encarado como um grande desafio e uma oportunidade de transformação e superação. Desta forma, mesmo sem ser classificado como alguém dotado de talentos especiais, todos que quiserem atender a este “chamado”, podem estar diante da oportunidade de descobrir um talento ainda desconhecido.
SegundoValborg Werbeck Svärström, cantora sueca criadora do método Werbeck praticado pela Escola do Desvendar da Voz (*), muitas pessoas que passaram grande parte de suas vidas acreditando não possuir voz alguma, após praticarem com persistência os exercícios de canto, constataram uma mudança significativa nas suas vozes, mesmo após os quarenta anos.
Esta forma de cantar conduz a um reencontro com a própria voz e com o prazer de cantar, o que o torna um método indicado para quem quer ter este aprendizado na idade adulta. Com a prática de exercícios específicos busca-se trabalhar, lapidar, desvendar aquilo que brota do fundo da alma. É um caminho que ensina a ouvir o que vem do interior de nós mesmos e dos que estão a nossa volta. Permite conhecer novas possibilidades da manifestação do canto no homem como um todo, o que leva a uma compreensão mais aprofundada do ser humano e das forças espirituais trazidas pelo tom.
(*) A Escola do Desvendar da Voz, foi fundada na Suíça por Valborg Werbeck Svärdström em 1924, sob a orientação do antropósofo Rudolf Steiner, que reconheceu este método como um caminho terapêutico e artístico.
Um ponto que diferencia este método dos outros é a preferência pelo trabalho em grupo. Cada pessoa chega de um lugar diferente, não só fisicamente, mas anímica e espiritualmente. No decorrer do processo, ao cantar com muitas vozes ao mesmo tempo, um delicado trabalho é realizado em relação à escuta ao outro e a entrega em amorosa solidariedade às outras vozes, o que implica em uma predisposição à doação e auto-educação. Deixar-nos conduzir pelo ouvido interior é fundamental para a afinação do nosso instrumento. Para compreender o essencial da sonoridade da voz, precisa acrescentar à percepção exterior, sensorial, a percepção da audição interna, espiritual.
“Exercícios para esquecer a respiração”: foi assim que Werbeck denominou os exercícios que possibilitam que a respiração aconteça da forma mais natural possível, sem bloqueios e interferências da consciência racional. A concentração do cantor está na emissão dos fonemas, na audição dos tons e na expiração. Ao inspirar, a atitude é de permitir que o ar entre naturalmente, sem esforço. Surge então uma sensação de leveza e o ser humano superior num movimento ascendente sente-se preenchido. Na expiração o movimento permeia o corpo em movimento descendente até os pés e surge a sensação de peso. No centro corpóreo, chamado de plexo solar, surge o centro de reflexão e equilíbrio.
a primeira é chamada de direcionamento. Abre-se o caminho para o fluxo sonoro, direcionando-o para cima. Esta fase está relacionada com a cabeça, com o sistema neuro-sensorial. Atividade de observação, imaginação e concentração em pontos e tons;
a segunda fase é chamada de expansão e agora o fluxo sonoro se expande na horizontal em direção às orelhas. Esta fase está relacionada com a região do meio, o sistema circulatório rítmico e trabalha-se com o sentimento;
a terceira fase, chamada de espelhamento está relacionada com o querer, sistema metabólico-motor. Após fazer o fluxo sonoro convergir para acima da cabeça (fases 1 e 2), a voz cresce e transborda, indo refletir-se no plexo solar.
Ao nos aproximarmos do mundo dos tons, podemos perceber que se estabelece um modelo arquetípico de atuação social, de apoio e incentivo mútuo. Aquele tom mais adiantado envia forças para aquele mais fraco ou atrasado. O ser individual do tom tem sempre a tendência de unir-se e equilibrar-se mutuamente, atuando no ser humano inteiro.
Ao trabalhar o canto por este método, surge a possibilidade do reencontro com as fontes espirituais da música, tornando-nos instrumentos de manifestação desta fonte no nosso mundo. Passamos a ser pontes entre dois mundos: o espiritual e o terreno. Nos beneficiamos das forças curativas dos tons e dos fonemas, mantendo nossa vitalidade e tornando nosso corpo maleável e permeável.
Com esta qualidade de canto, levamos ao ouvinte o germe de um anseio inconsciente pela libertação da cosmovisão materialista em que nos encontramos atualmente. As formas antigas de apresentação na relação artista-estrela e público ansioso pela perfeição, são substituídas por formas mais verdadeiras e genuínas na relação de pessoas que “presenteiam-se” umas às outras com o resultado de um processo de descobertas e crescimento que se revela no individual e no coletivo.
A partir de um repertório de música popular brasileira, iniciamos o trabalho, a princípio cantando todos a mesma melodia, em uníssono. Neste momento são trabalhados aspectos básicos relacionados à escuta, à respiração, buscando a afinação do grupo. Como um segundo passo, uma segunda voz é adicionada, na medida que os alunos estão prontos para isso. É muito gratificante observar uma grande diferença na atitude dos alunos que chegaram no princípio se impondo obstáculos em relação ao canto. Após poucos meses de trabalho, surgem os resultados, muitas vezes modestos, mas que são frutos de um rico processo de transformação que segundo seus próprios relatos, são significativos para a melhoria da qualidade de vida.
Um olhar de encantamento ao fazer os exercícios e descobrir a possibilidade de ouvir ativamente o que acontece entre um tom e outro, uma grande alegria em ouvir a própria voz cantada pela primeira vez, uma grande satisfação ao terminar uma canção e perceber como foi bom cantar juntos. Estes são alguns exemplos dos progressos alcançados.
Quanto mais pessoas estiverem trabalhando neste sentido, mais força de transformação será mobilizada. São pessoas se transformando e, portanto, pessoas que vão cantar e atuar de forma diferenciada no mundo.
“Se as pessoas cantassem, cantassem mais e acima de tudo de forma correta, haveria menos crimes sobre a face da Terra.” (Rudolf Steiner)
Este texto e outras informações sobre o trabalho de Elizabeth Viero encontram-se no site:
http://www.ouvirativo.com.br/rede/m-ev/ev.htm
VARGAS, Metchild. Terapia do canto: um caminho de recuperação da voz. 1995. Monografia de conclusão de Graduação em Musicoterapia. Universidade de São Paulo. São Paulo, 1995.
WERBECK-SVÄRDSTRÖM, V. A Escola do Desvendar da Voz. Tradução Jacira Cardoso. São Paulo: Antroposófica, 2001.
Entrevista com Meca Vargas e Thomas Adam. Revista Chão e Gente. Agosto 1997, n. 27.